A síndrome de canário belga

Mais que solitário, em uma solidão acompanhada, sinto-me isolado mesmo. O que será que se passa? Tudo parece se perder a partir de determinado ponto por mais que me mantenha em torno dos objetivos traçados. Algo escapa-me. Não consigo dar conta da realidade, é visto. Guardo comigo uma desconfiança brutal de tudo e todos e, pensando a respeito, concluí que de certa forma esse sentimento pode ter a ver com o fato de ter sido criado sob ditadura militar.

Espionar, trair, passar-se por amigo e aliado sendo justamente o contrário são comportamentos banalizados por regimes autoritários e os inimigos contumazes da liberdade. Não se pode dizer que o Brasil esteja livre dessas coisas, vinte e poucos anos depois da saída - impune - de cena dos algozes de toda uma geração de brasileiros criada à sombra do medo e o terror da delação e a tortura.

Os males de uma ditadura para os indivíduos formados sob seu tacão são ainda mais perenes e duradouros, arrisco dizer, do que para o conjunto das instituições civis - cujo exercício diário acaba por repor nos trilhos da democracia a sua prática quotidiana, em maior ou menor grau, com o correr do tempo para fora do arbítrio. A própria arena da vida pública assegura por fim esta reposição.

Nos indivíduos, não. Os temores instalados nos confins da alma, a desconfiança latente com que foi preciso aprender a olhar a todos ao derredor são estigmas, seqüelas internalizadas no âmago de sua própria e distorcida percepção de mundo.

Multiplicada por milhões de seres que muita vez sequer suspeitam a origem de seus medos e desconfianças, o entrecruzamento de tais percepções distorcidas faz por perpetuar de algum modo o clima de insegurança e dúvida instalado por uma ditadura.

Homens acoelhados, espíritos descrentes do sentido prático da liberdade, relacionamentos construídos com base na impossibilidade de ser sincero, direto e reto, tudo isso nos faz piores do que precisaríamos ser fora de um ambiente autoritário e retrógrado; valores putrefatos permanecem vigendo em nossos corações, de onde se ausentam a clareza, a franqueza, o diálogo, porque de certa forma, psicologicamente falando, permaneceremos pela vida afora reféns de atrocidades simbólicas cometidas contra as nossas chances como indivíduos. E também como nação.

O ato mais letal de uma ditadura é a castração do espírito de liberdade no interior mesmo das pessoas que somos. Agora, já não sabemos o que é ser e se sentir livres, a vida vai correr, nosso sangue vai correr pelas veias, mas permaneceremos para sempre paralisados pelo medo da punição violenta e desproporcional e é possível que os relacionamentos inter-pessoais e coletivos permaneçam vincados pela desconfiança de que algo de ruim possa acontecer sempre que se disser o que se sente e o que se pensa.

As ditaduras desensinam as pessoas a pensar e elas ensinam isto aos filhos e duas gerações mergulham no abismo do medo e da obsolecência. O mundo real fica ao deus-dará enquanto não se sai da paralisia profunda e da desordem interior produzidas pelo terror das armas e as agressões muitas vezes gratuita, pelo fato apenas de uma alegria ou um entusiasmo qualquer que extravasa das entranhas do ser, sem que saiba ao certo também de onde vem aquela labareda de luz a iluminar a face.

Há muito tempo que não pensava na ditadura, no imenso mal que os militares brasileiros fizeram à minha vida. Mas, quando observo a descontinuidade de fluxo das minhas relações, do quanto resulto temeroso de me expor e dizer claramente o que sinto e penso, é impossível esquecer ou não me recordar daquele aluno novo, saído do éter, que foi parar na minha turma, no longínquo ano de 1975, alguns dias depois de uma inocente greve do 3º ano Científico do Colégio Anchieta de Nova Friburgo, pelo singelo desejo que tínhamos de usar cabelos compridos e ir de calça de brim desbotada e boca de sino para as aulas. Motivo suficiente para a insuspeitada aparição de um matriculado em fim de ano letivo e com a barba cerrada por alguns anos a mais que a adolescência de penugem da maioria de nós...

Nada pode ser comprovado. No Brasil, até hoje, repare, nada pode ser comprovado, à exceção do roubo de galinhas. Não andamos muito nesse particular. O mundo continua parado para nós na impossibilidade de se comprovar ou desmentir qualquer suspeita. Um país sem leis patinha para sempre em suspeições.

Justamente é a suspeita o que uma ditadura instaura com requinte e habilidade em nossas almas desavisadas. Se a lei promove a verdade e esta, a justiça, o que será que a suspeição promove, senão o medo latente, a desconfiança permanente e generalizada e um sentimento de estar sendo traído a todo momento por um inimigo oculto no interior das próprias fileiras, em seu próprio sangue, com duas caras e um coração atravessado pela perfídia?

A suspeita permanece nas relações dos indivíduos no Brasil, decorridos mais de vinte anos desde o fim da última ditadura. A outras tantas anteriores guardamos gratidões confusas e reconhecimentos incongruentes, prenhes de contradições insuperáveis como admitir por estadistas os assassinos do estado democrático de direito ou, então, vislumbrar na lama do conluio entre direita e esquerda o brilho alto e inatingível do luar do consenso.

No Brasil, finge-se o consenso. Até os punhais da noite. Acorda-se tudo, até que a outra parte adormeça para a própria morte por azeite fervendo no ouvido. Não consigo alcançar outra explicação para isso senão um traço persistente, um fulcro de caráter sado-masoquista que nos fez compreender a humanidade do carrasco enquanto penávamos dependurados no patíbulo. Um contra-senso. O mesmo contra-senso que faz o pobre deste país morrer de admiração e respeito (temor?) por seus usurários patrões e apunhalar com cutelos àqueles outros que os querem efetivamente bem, isto é, fortes e livres.

Ninguém me acompanha neste raciocínio, por ele sou isolado, evitado, repulsado e é por pouco que não sucumbi ao mesmo sado-masoquismo em que se confraternizam povo e elites no Brasil. Tudo isso é pernicioso e incontornável. Como diria o pai à filha descabaçada, está feito. A ditadura calçou as chinelas da compulsória, ao fim de vinte anos de sevícia, e deixou-nos a nós o pasmo atarantado de sua seqüela - algo como uma síndrome de canário belga, para quem trezentos anos de cativeiro fizeram por anular o sentido profundo da liberdade na mata e ensinar o prazer da gaiola.

Poucos me lêem, nenhum me ouve. Ouço meu próprio e ensurdecedor silêncio. Estou certo de que não estou falando nenhuma besteira, no entanto, a indiferença é crescente e o isolamento progressivo. Só me falta raspar o cabelo ao modo dos sioux antes de pintá-los de azul.

Arara azul, proclamo em mim a liberdade da beleza, luto contra os cárceres íntimos de um homem. No entanto, o silêncio ao derredor de minha dor parece minimizar isto, este meu esforço por ser eu mesmo mais que uma função social.

As ditaduras passam, permanecem, contudo, por duas, três gerações as conseqüências nefastas e íntimas de sua desconstrução do sujeito. Restam objetos.

Se repararmos bem, o que é a vida hoje no Brasil senão um conjunto medíocre de objetos adquiridos com o dinheiro parco de nosso conformismo? Onde está uma boa razão para se viver que não nas agruras de um eu superlativo? Tudo vai mal... algo escapa-me. De qualquer forma, senhores, ainda insisto comigo mesmo que ninguém pode jogar a toalha enquanto dentro do ringue. Os raundes se sucedem, a gente apanha, pouco aprende quem apanha, de qualquer forma, é tudo que temos: a convicção de que o sofrimento apenas explicita a nossa descomunal capacidade de aprender mesmo com nossos piores momentos.

Vou continuar pensando assim mesmo morto e isso nem os remanescentes da ditadura são capazes de modificar. Algum gozo tinha de ter. É este.



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