25 de abril de 2024 às 16:00
Eternidade & imortalidade

Vamos deixar claro: qualquer mera asseveração que faça reporta-se, sempre, aos estritos limites de meus corpo e consciência, duas separações que busco — incessante e inutilmente — juntar a título de enfraquecer certa tendência humana à dualidade. Sem a ilusão de superá-la, contudo. (Não quero parecer sabichão pelo fato apenas de que falo pelos cotovelos e me interesso por muitos assuntos).

Isto posto, digo que — para mim — eternidade e imortalidade não são exatamente a mesma coisa, muito embora se confundam. Se penso na eternidade posso aceitá-la como o mistério inefável do tempo, a grande questão metafísica, segundo Borges [1899-1996], que nos atravessa — fisicamente — ao longo da brevíssima existência. Toda existência é breve em face da eternidade do tempo, que antecede e sucede a tudo e todos.

Mas, se penso por outro lado na imortalidade, a imortalidade da alma, tendo a considerá-la senão inútil — além de inconveniente —, apenas como a projeção de nossa insatisfação com a vida breve que nos foi dada e que está fadada a ser por princípio incompleta, inconclusa, improvisada e, por isso mesmo, nos faria desejar que perdurasse para além do corpo, seu veículo e continente. Como uma segunda chance da plenitude imaginada. E roubada pelas contingências.

Lembro-me de um artigo que li de certa feita acerca de como Lavoisier [1743-1794] aceitou com tranqüilidade o seu destino. Rico cobrador de impostos, caído em desgraça por obra dos acontecimentos da Revolução Francesa [1789], ele simplesmente fez — no cárcere — um balanço de sua vida e considerou o resultado geral um dos melhores a que poderia ele mesmo chegar. Tinha sido um homem feliz, em paz consigo mesmo, e portanto aceitava com total desprendimento, sem revolta, a idéia de sua execução.

Aquilo me chocou. Um pouco. E me enterneceu. Muito! Afinal, creio que nem em duzentos anos de existência eu lograria o desfrute de tamanho assentamento entre meus atos e anseios, ao ponto de reconhecer a hora da morte — na guilhotina! — apenas como o epílogo equivocado de uma vida íntegra de prazeres e paixões do espírito.

Mas, aprendi algo ali, naquela leitura ligeira. Aprendi que a imortalidade é desnecessária e corresponde, na maior parte de nós, a um desejo de revisar a vida, sendo válido, creio, repisar que não há outro modo de viver senão deixando mesmo que as coisas escapem, que tudo escape, até que nós próprios também escapemo-nos e vai-se o átimo em que existimos para o bebeléu — sendo o beleléu uma categoria metafísica de difícil tradução para fora da cultura brasileira, se é que me faço entender. Vou tentar explicar. O beleléu seria por assim dizer uma espécie de limbo esculhambado, avacalhado e... esculachado!

Não sinto qualquer necessidade de ter uma alma imortal e de viver eternamente. (Olha a confusão aí, entre uma coisa e outra!). Minha avó, aos cem anos, urrava sobre a cama, agarrada aos lençóis, com seus olhos de jabuticaba desbotada lançados sobre mim, Eu não agüento mais, meu filho! É muito tempo!... Eu a compreendia inteiramente e compartilhava sua aflição. Também já tive a ambição de ser longevo, mas hoje entendo a vida como a oportunidade de pagar o que devo! Fiz tantas burradas, cometi tantos erros e alguns crimes imperdoáveis que talvez isto explique este fervor ao contrário com que ora declaro minha predileção por uma ideia da morte como a plenitude do esquecimento, mar para onde corre desabalado o Amazonas do tempo. Não que já esteja doido para ir me deitar de sapatos — imagem do poeta Mário Quintana [1906-1994] para o conforto da morte. Não é isso. Já o disse: quero aproveitar a vida que me resta para amortizar as dívidas impagáveis que contraí neste mundo. Mas, com toda a honestidade intelectual possível a um sujeito como eu — e que não é nem muita nem tanta —, digo que não vejo porque eu ou qualquer outro deveríamos durar para sempre em nós mesmos. Deve ser insuportável! Como não dormir nunca.

Talvez, Deus, na sua solidão infinita e no seu amor infinito, grite pelas galáxias — como minha avó ? Não agüento mais!... E o Universo ali, parado em seu negror medonho, indiferente, a deslizar na pista de gelo da eternidade... Não! Sinceramente! Tudo que desejaria para mim é a tranqüilidade de Lavoisier diante da invenção horrenda do doutor Joseph Guillotin [1738-1814] e a insanidade jacobina: olhar para o que fiz — no caso dele, a descoberta da lei da conservação das massas, catso! —, pensar em como desfrutei laboriosamente os prazeres indizíveis do espírito dentro do paletó de carne e muito simplesmente dizer, como um bom francês, je mon vais...

Por outro lado, o terror da morte que me apavora — e vou confessá-lo aqui pela primeira vez — é acordar do outro lado da cidade-do-pé-junto com a história da minha vida pronta e acabada para revivê-la eternamente, repetindo a cada manhã do novo tempo — o tempo borgeano, circular e imóvel — todas as milimétricas besteiras que fiz, de modo recorrente e sem alteração possível. Passaria lépido pelos acertos, é certo, os erros é que agarram na vitrola, não é fato?

A morte seria, assim, a prisão definitiva no cárcere da memória — ao contrário do que tantos supõem quando falam no aprisionamento do corpo. Neste meu horror, ao contrário, o paraíso do homem é o breve instante fugidio que ele tem para inventar sua eternidade. Tudo depois da morte seriam apenas as lembranças redivivas do que fizemos, mais o que poderíamos ter feito — e não o fizemos, seja lá porque motivo — ao longo da breve existência.

Eu reexaminaria dia após dia — sendo que imagino os dias na eternidade como unidades de longa duração e extremamente complexas em sua profusão de ínfimos detalhes — cada um de meus atos, pensamentos, sentimentos, como eles se sucederam dentro das circunstâncias dadas e como poderiam ter sido, para mais ou para menos, se tivesse por vezes movido um único dedo mindinho em uma direção, não em outra. Ou mesmo ficado imóvel, duro e teso, durante esta ou aquela borrasca. A eternidade seria, assim, uma sucessão interminável de "se" face a um "porém", que corresponderia ao que foi feito de fato.

Um horror, em suma, a morte como a imagino, se imagino a permanência da consciência dentro dos meandros da memória individual. Esta que nos concede certa unidade diante da gravitação universal — que a tudo suga para o buraco negro do esquecimento.

De qualquer forma, creio, mesmo que acorde com um barulho desses lá do outro lado da cidade-do pé-junto é provável que, com o tempo, eu me acostume. Afinal, com tudo se acostuma. Mesmo Deus, na sua solidão infinita e no seu amor infinito, não é possível que passe todo o tempo berrando pelos confins como a minha avó em seu leito de centenária enfarada.

Portanto, também eu, desperto para o horror da memória eterna, vou dar um jeito de me conformar com as burradas que fiz e lançar meus pobres olhos de imortal sobre os melhores aspectos de minha fátua existência como indivíduo, a que estarei preso para sempre. Não vai ser fácil, mas diria que — se assim o for — eu mereço o castigo, afinal, ganhei a vida de mão beijada e não havia porque desperdiçá-la com tantos equívocos brutais — como o fiz — gravados para sempre na caverna da memória. Eu que me agüente, então, é o melhor que faço...


 

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